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fernando pessoa

«...Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém....»

_______ Fernando Pessoa

SAUDADE
 

Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando, do meio destes amigos que não conheço,
Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do meio destas vontades involuntariamente
Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!

Ah, navio que partes, que tens por fim partir,
Navio com velas, navio com máquina, navio com remos,
Navio com qualquer coisa com que nos afastemos,
Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa,
Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente,
Só válida à emoção através da saudade futura,
Da saudade, esquecimento que se lembra,
Da saudade, engano que se deslembra da realidade,
Da saudade, remota sensação do incerto
Vago misterioso antepassado que fomos,
Renovação da vida antenatal, [...]
Absurdamente surgindo, estática e constelada
Do vácuo dinâmico do mundo.

Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,
Que têm realidade na alma,
Que não são mitos, são a realidade
Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la...
Eu quero partir, como quem exemplarmente parte.
Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou?
Para que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou,
Mas isto tudo é como uma realidade longínqua
Daqueles que não partiram ou daqueles
Cujo lar é nenhum e de memória
Quando, navio [...], deixaremos o lar que não temos?

Navio, navio, vem!
Ó lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete,
Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,
Navio de passageiros de todas as nações diversas,
Navio todos os navios,
Navio possibilidade de ir em todos navios
Indefinidamente, incoerentemente,
À busca de nada, À busca de não buscar,
À busca só de partir.
À busca só de não ser
À primeira morte possível ainda em vida —
O afastamento, a distância, a separar-nos de nós.

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada...
Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,
Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a roda multicolor girando branca aos olhos
Do fantasma inteiro que somos,
Lágrima das pálpebras descidas
Do olhar velado divino.

Navio quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me
A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!
Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,
O rio entre mim e a margem.
O mar entre mim e o cais,
A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!"

 

Álvaro de Campos - Livro de Versos, Fernando Pessoa

«...Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida."»

_______ Fernando Pessoa

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."


Álvaro de Campos, Fernando Pessoa

...

Flor que não dura 
Mais do que a sombra dum momento 
Tua frescura 
Persiste no meu pensamento.
Não te perdi 
No que sou eu, 
Só nunca mais, ó flor, te vi 
Onde não sou senão a terra e o céu.


_______ Fernando Pessoa

...

Por que fiz eu dos sonhos 
A minha única vida?


_______  Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: 'Fui eu?'
Deus sabe, porque o escreveu.


_______ Fernando Pessoa

Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver,
acrescentariam nova luminosidade às estrelas,
nova beleza ao mundo
e maior amor ao coração dos homens.


_______ Fernando Pessoa

Ai que prazer 
Não cumprir um dever, 
Ter um livro para ler 
E não fazer! 
Ler é maçada, 
Estudar é nada. 
Sol doira 
Sem literatura 
O rio corre, bem ou mal, 
Sem edição original. 
E a brisa, essa, 
De tão naturalmente matinal, 
Como o tempo não tem pressa... 

Livros são papéis pintados com tinta. 
Estudar é uma coisa em que está indistinta 
A distinção entre nada e coisa nenhuma. 

Quanto é melhor, quanto há bruma, 
Esperar por D.Sebastião, 
Quer venha ou não! 

Grande é a poesia, a bondade e as danças... 
Mas o melhor do mundo são as crianças, 

Flores, música, o luar, e o sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca. 

Mais que isto 
É Jesus Cristo, 
Que não sabia nada de finanças 
Nem consta que tivesse biblioteca... 


_______ Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" 

 

 

 

 

Onde Você Vê 

Onde você vê um obstáculo,
alguém vê o término da viagem
e o outro vê uma chance de crescer.

Onde você vê um motivo pra se irritar,
Alguém vê a tragédia total
E o outro vê uma prova para sua paciência.


Onde você vê a morte,
Alguém vê o fim
E o outro vê o começo de uma nova etapa...
Onde você vê a fortuna,
Alguém vê a riqueza material
E o outro pode encontrar por trás de tudo, a dor e a miséria total.

Onde você vê a teimosia,
Alguém vê a ignorância,
Um outro compreende as limitações do companheiro,
percebendo que cada qual caminha em seu próprio passo.

E que é inútil querer apressar o passo do outro, 
a não ser que ele deseje isso.
Cada qual vê o que quer, pode ou consegue enxergar.

"Porque eu sou do tamanho do que vejo.
E não do tamanho da minha altura.


_______ Fernando Pessoa

 

 

Teus Olhos Entristecem 

Teus olhos entristecem
nem ouves o que eu digo.
Dormem, sonham esquecem...
Não me ouves, e prossigo.

Digo o que já, de triste,
te disse tanta vez...
Ceio que nunca o ouviste
de tão tua que és.

Olhas-me de repente
de um distante impreciso
com um olhar ausente.
Começas um sorriso.

Continuo a falar.
Continuas ouvindo
o que estás a pensar,
já quase não sorrindo.

Até que neste ocioso
sumir de tarde fútil,
se esfolha silencioso
o teu sorriso inútil.

 

______ Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

O Amor É Uma Companhia

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
e ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.


"O Pastor Amoroso". In Poemas de Alberto Caeiro

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